quarta-feira, 17 de novembro de 2010

A Fundamentação Civil-Constitucional dos Direitos dos Deficientes

Apresentação



Os direitos dos deficientes não resultam de uma postura filantrópica do Estado brasileiro.

A República Federativa do Brasil fundamenta-se constitucionalmente, entre outros, no princípio da dignidade humana e tem objetivos como a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, e a redução das desigualdades sociais e regionais. Estabeleceu, assim, o legislador constituinte de 1988 as bases axiológicas do texto magno, reafirmando o antigo princípio liberal da Revolução Francesa: a igualdade de todos perante a lei (artigo 5º, caput).

Entretanto, quando o objeto de análise são as pessoas portadoras de deficiência, fica clara a desproporção de acesso aos direitos individuais e sociais ao exercício das suas cidadanias, exigindo-se a presença do Estado.

Cunhou-se, doutrinariamente, em atendimento às dificuldades das minorias, a diferença entre os conceitos de igualdade perante a lei e igualdade na lei.

Da igualdade perante a lei resulta a aplicação da lei ao caso concreto, independente de juízo de valor emitido pelo aplicador do direito. Da igualdade na lei surge a impossibilidade de uma lei dirigir-se a pessoas diferentes, privilegiando pessoas ou grupos, exceto se autorizada pela própria lei. Dirige-se este segundo princípio aos legisladores e aplicadores do Direito.

O modelo constitucional brasileiro estabeleceu que a igualdade perante a lei é o que na doutrina geral temos por igualdade na lei, dirigindo-se prioritariamente ao legislador, pois ao juiz caberá, tão-somente, sua aplicação ao caso concreto.

A Constituição brasileira ocupa-se, reiteradas vezes, em tutelar as pessoas portadoras de deficiência. É que o Estado e a sociedade têm o dever de favorecer condições ao pleno exercício dos direitos individuais e sociais e sua efetiva integração social: ao Poder Público cabe o exercício de suas três funções típicas – legislar, executar a lei e, se provocado, defender lesão ou ameaça de lesão aos direitos materiais; à sociedade cabe, através das entidades privadas e dos organismos internacionais, articulados com os órgãos públicos e por estes autorizados, garantir a efetividade de programas de prevenção, atendimento especializado e de integração social.

As exceções que a Constituição estabelece como direitos dos portadores de deficiência não devem ser interpretadas como um tratamento desigual, de cunho beneficente, mas considerado o universo a que se dirigem, às peculiariedades do grupo em questão, pois a igualdade abstrata perante a lei desiguala. E somente a lei pode desigualar e, quando o faz, objetiva igualar os desiguais, oferecendo-lhes as condições necessárias ao pleno exercício de sua cidadania, visto que tanto se viola o princípio da igualdade quando em situações semelhantes recebe o cidadão tratamento diferenciado, como quando pessoas em situações diversas recebem tratamento igual.




As normas constitucionais de proteção às pessoas portadoras de deficiência



· Artigo 7º, XXXI, integrado no rol dos direitos sociais, referindo-se aos trabalhadores urbanos e rurais, a “proibição de qualquer discriminação no tocante a salários e critérios de admissão do trabalhador portador de deficiência”. Este inciso reitera o artigo 3º, IV que estabelece como objetivo da República Federativa do Brasil a “promoção do bem de todos, sem preconceitos... e quaisquer outras formas de discriminação”.

· Artigo 23, II, distribui a competência para cuidar da saúde e da assistência pública, da proteção e da garantia das pessoas portadoras de deficiência entre a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, cabendo ao Poder Público Federal, nos termos da lei complementar 7853/89, conferir-lhes atendimento prioritário e apropriado, a fim de que lhes seja efetivamente ensejado o pleno exercício de seus direitos individuais e sociais, bem como sua completa integração social.

· Artigo 24, XIV, remete à competência concorrente da União, dos Estados e do Distrito Federal para legislar sobre a proteção e a integração social das pessoas portadoras de deficiência, ensejando maior eficácia nas atribuições da norma anterior. Os municípios não se incluem entre os entes federativos de competência legislativa com tal finalidade.

· Artigo 37, VIII, ao tratar da Administração Pública determina que “a lei reservará percentual dos cargos e dos empregos públicos para as pessoas portadoras de deficiência e definirá os critérios de admissão”. Esta norma constitucional encontra-se complementada pela Lei 8112/90 em seu artigo 5º, § 2º.

· Artigo 203: este artigo trata da assistência social aos menos favorecidos e preocupou-se o legislador, tanto no inciso IV que institui como um dos seus objetivos a habilitação e a reabilitação das pessoas portadoras de deficiência à vida comunitária, como no inciso V, garantindo-lhes um salário mínimo mensal a título de benefício quando comprovarem não possuir meios de se manterem ou serem providos por suas famílias.

· Artigo 208: reconhece a Educação como dever do Estado, assegurando às pessoas portadoras de deficiência atendimento especializado, preferencialmente na rede regular de ensino.

· Artigo 227: inserido no capítulo Da Família, da Criança, do Adolescente e do Idoso, responsabiliza, igualmente, a família, a sociedade e o Estado pelo atendimento dos direitos fundamentais da criança e do adolescente necessário ao pleno desenvolvimento de sua personalidade, integridade física e perfeita adaptação social, enumerando um rol de prioridades. O inciso II do § 1º do referido artigo, estabelece para o Estado o dever de promover programas de assistência integral à saúde destas crianças e adolescentes que, portadores de deficiência física, sensorial ou mental, aí se inserem, com o objetivo de promover-lhes: prevenção e tratamento especializado; integração social assegurada através do treinamento para o trabalho e a convivência; a facilitação operacional do acesso aos bens e aos serviços coletivos e a eliminação de preconceitos e obstáculos arquitetônicos.

· Artigo 244: remete à disposição, por força de lei complementar, sobre a adaptação de logradouros, edifícios públicos, veículos de transporte coletivo já existentes ao tempo da promulgação da Constituição Federal vigente, a fim de garantir às pessoas portadoras de deficiência o direito constitucional de ir e vir.

· O acesso físico dessas crianças e jovens aos edifícios de uso público será planejado em norma complementar – disposições contidas obrigatoriamente nos Planos Diretores dos municípios com mais de 20.000 habitantes – bem como a fabricação de veículos de transporte coletivo.




As normas civis federais de apoio às pessoas portadoras de deficiência



Além das normas constitucionais, leis civis promulgadas em todos os níveis federativos vêm ao encontro dos direitos das pessoas portadoras de deficiência em conformidade com os princípios gerais do direito consagrados em nosso ordenamento jurídico.

As principais leis federais, promulgadas após a Constituição de 1988, são as leis 7853/89, a 8028/90 (que alterou a anterior) e o decreto 914/93.

O decreto 914/93 instituiu a política nacional para a integração da pessoa portadora de deficiência, atribuindo à CORDE (Coordenadoria Nacional para a Integração da Pessoa Portadora de Deficiência) a ampla divulgação desta política.

À CORDE, órgão vinculado ao Ministério da Justiça, cabe sugerir planos, programas, projetos, cumprindo instruções superiores, com a cooperação dos demais órgãos da Administração Pública Federal.

A CORDE conta com um conselho consultivo disciplinado em ato do Poder Executivo, constituído de representantes de órgãos e assuntos pertinentes à pessoa portadora de deficiência.

No decreto 3076/99, o Presidente da República criou, no âmbito do Ministério da Justiça um órgão superior de deliberação coletiva, o CONADE (Conselho Nacional dos Direitos da Pessoa Portadora de Deficiência), constituído por representantes de instituições governamentais e da sociedade civil, com composição e funcionamento disciplinados pelo Ministro de Estado da Justiça.

A competência do CONADE apresenta-se elencada em dez incisos do artigo 2º do referido decreto e tem o perfil de um constante fiscal do cumprimento da política nacional específica para as pessoas em questão, bem como de propositor dos encaminhamentos necessários ao atendimento de seus interesses.

Cabe a crítica a respeito da excessiva centralização das decisões cujos interesses pertencem ao grupo das pessoas portadoras de deficiência, visto que ao Ministro da Justiça compete a disposição sobre os critérios de escolha de seus membros.

O decreto 914/93 define, para fins legais, a pessoa portadora de deficiência como “aquela que apresenta, em caráter permanente, perdas ou anomalias da sua estrutura ou função psicológica, fisiológica ou anatômica, que gerem incapacidade para o desempenho de atividade, dentro do padrão considerado normal para o ser humano”.

Partindo-se desta conceituação, podemos definir o alcance das normas em questão, sabendo que elas abrangem áreas diversas de atuação.




Na área da Educação



Quando a Constituição, em seu artigo 208, assegurou a Educação Especial, determinou que esta será ministrada, preferencialmente, na rede regular de ensino.

A lei complementar 7853/89 detalhou este atendimento que vai da educação precoce até o 2º grau, a educação supletiva e a que visa a formação profissional, criando-se currículos, etapas e exigências de diplomação próprios, inseridas as escolas no sistema educacional.

A estes alunos serão assegurados todos os benefícios recebidos pelos demais, dentre eles material e merenda escolares, e bolsas de estudo, sendo suas matrículas compulsórias nos estabelecimentos públicos ou privados, sempre que, a despeito de suas deficiências, forem capazes de se integrarem, podendo-se interpretar favoravelmente a independência da existência ou não de vaga.

Se o aluno portador de deficiência estiver internado em hospital ou estabelecimento semelhante, haverá oferecimento obrigatório de programas de educação especial em nível de pré-escolar e escolar.

A lei 9394/96, que estabelece diretrizes e bases da educação nacional, dedicou o capítulo V à Educação Especial definindo-a como “a modalidade de educação escolar, oferecida preferencialmente na rede regular de ensino, para educandos portadores de necessidades especiais”.

A educação que lhes é oferecida deverá dar-se, preferencialmente, em classes regulares, assegurando-lhes a perfeita integração com os demais, que terão a oportunidade de exercitar a solidariedade, visto ser componente imprescindível a qualquer projeto educacional.

Se o aluno não tiver condições de integrar-se total ou parcialmente, haverá os serviços de apoio especializado, funcionando dentro da escola regular.

Os Institutos de Educação Especial que, tradicionalmente, prestam serviços relevantes, encontram respaldo na atual Lei de Diretrizes e Bases da Educação em seu artigo 59, quando particulariza questões como currículos, métodos, técnicas específicas, terminalidade de acordo com cada indivíduo, professores especializados e a educação especial para o trabalho, visando a efetiva integração social.




Na área da Saúde



Ao cuidar da saúde da pessoa portadora de deficiência, o legislador preocupou-se com a prevenção, estabelecendo como dever do Estado o esclarecimento nas questões de planejamento familiar, aconselhamento genético, o acompanhamento da gestante em todas as fases da gravidez e do parto, da nutriz e do bebê, a orientação quanto a doenças do metabolismo e outras causadoras de deficiência.

A prevenção estende-se à criação de programas que se destinam a evitar os acidentes de trabalho e de trânsito.

Garantia de uma rede de serviços especializados em reabilitação e habilitação.

Acesso garantido aos estabelecimentos de saúde públicos e privados (a estes não esclarece quem os remunera).


Atendimento domiciliar de saúde para o deficiente grave não-internado.

Desenvolvimento de programas de saúde junto a entidades não-governamentais.

Na área da formação profissional e do trabalho

O legislador constituinte percebeu a fragilidade com que as pessoas portadoras de deficiência se colocam no mercado competitivo de trabalho e proibiu qualquer espécie de discriminação. Mas, para que haja a participação do deficiente no mercado de trabalho, é preciso capacitá-lo e é dever do Estado fazê-lo, instituindo sua Política.

O apoio governamental volta-se para a formação e a orientação profissionais, o acesso a estes serviços e aos cursos regulares.

A promoção de medidas visando à criação de empregos, que privilegiam atividades econômicas de absorção de mão-de-obra das pessoas portadoras de deficiência, ampliando suas alternativas, faz parte da política instituída pelo decreto 9l4/93.

Neste sentido, a lei 8112/90 que é o Regime Jurídico Único dos servidores públicos federais, determina a reserva de até 20% das vagas de concursos públicos para deficientes, desde que as atribuições sejam compatíveis com a deficiência de que são portadoras, e o artigo 93 da lei 8213/91 destinou até 5% das vagas de trabalho aos deficientes em empresas privadas com mais de cem funcionários.




Na área dos Recursos Humanos



O fomento à formação de recursos humanos para adequado e eficiente atendimento das pessoas portadoras de deficiência tais como professores com especialização adequada em nível médio ou superior, técnicos de nível médio especializado em habilitação e reabilitação, instrutores para a formação profissional; o incentivo à pesquisa e ao desenvolvimento tecnológico.




Na área das edificações



Em reiteração à norma constitucional contida no § 2º do artigo 227 e no artigo 244, a lei 7853/89 dispõe sobre a efetiva execução de normas que viabilizem o acesso das pessoas portadoras de deficiência, evitando e removendo obstáculos, construindo rampas de acesso a edifícios e logradouros, bem como dos meios de transporte.

A lei 8899/94 concedeu passe livre às pessoas portadoras de deficiência no sistema de transporte coletivo interestadual.

Uma leitura extensiva ao artigo 2º da lei 7853/99 interpretaria como concedido o passe livre a todo meio de transporte, no entanto, leis locais municipais e estaduais têm reiterado com tutela específica.




Na área da Assistência Social



A lei 8742/93, que dispõe sobre a organização da assistência social, reconhecendo-a como direito do cidadão e dever do Estado, tem como um de seus objetivos a habilitação e a reabilitação das pessoas portadoras de deficiência, integrando-as à vida comunitária, e concede o benefício de um salário mínimo mensal quando estes comprovarem não possuir meios de prover a sua manutenção por si ou por sua família. O critério estabelecido para perceber o benefício é que a renda per capita familiar seja inferior a do salário mínimo e não pode ser acumulado com qualquer outro benefício no âmbito da seguridade social ou de outro regime, salvo o da assistência médica. O recebimento pode se dar ainda que o deficiente encontre-se internado.

A competência para concessão do benefício é da União.




A ação civil pública



Cabe ao Ministério Público da União, dos Estados, dos Municípios e do Distrito Federal a propositura de ação civil pública quando estes direitos materiais coletivos ou difusos forem lesados. Vale dizer que os direitos coletivos são os que atingem um conjunto determinado de pessoas reunidas em torno de um interesse comum, e os difusos, aqueles que, por sua abrangência, não se pode determinar seus titulares, que são pessoas relacionadas a certo fato, sem identificação possível do grupo total.




A criminalização do preconceito



O artigo 8º da lei 7853/89 tipifica o preconceito contra a pessoa portadora de deficiência com pena de reclusão de um a quatro anos e multa, distribuído em seis incisos, tais como dificultar inscrição de aluno deficiente em estabelecimento de ensino, dificultar acesso a cargo público, negar injustificadamente vaga de trabalho, negar assistência médica, deixar de cumprir ordem judicial expedida na ação civil ou obstar por qualquer forma a sua propositura.




Conclusão



Este trabalho procurou fundamentar o cunho valorativo das normas civis e constitucionais que, em nosso ordenamento jurídico, tutelam os interesses individuais, coletivos e difusos das pessoas portadoras de deficiência, afastando o preconceito e as discriminações e tomando a si o Poder Público a obrigação de editar normas e fazê-las cumprir.

Sabemos que muitas destas normas não são sequer conhecidas; que a discriminação começa por vezes em casa, movida por atitudes protecionistas, deixando a família de promover o desenvolvimento das potencialidades do deficiente; visualizamos constantemente nossas calçadas quebradas, por vezes esburacadas a oferecer perigo; sabemos o quanto custa à iniciativa privada acreditar em sua capacidade produtiva.

Mas lhes resta a lei, desta não se pode desacreditar, confiando-se na justiça dos homens a ser provocada a cada lesão de direito e na justiça de Deus que, misteriosamente, deu a cada um de nós uma alma e um corpo que, por vezes, cabe ao Estado cuidar melhor, não por filantropia, mas por justiça social.

Lídia Caldeira Lustosa Cabral - Professora de Língua Portuguesa do Município do Rio de Janeiro e acadêmica do Curso de Direito da UNI-RIO.
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